Eu estou aqui, de frente pra tela, decidindo se banco esse assunto ou falo de algo mais ameno. Fico receosa. Rumino prós e contras e avalio se estou disposta. Afinal, estamos todos esgotados da polarização política e me questiono se falar disso é chover no molhado.
Mas ok, decido! Vou bancar esse assunto, mesmo sabendo que talvez alguém venha me encher o saco falando que eu disse algo que não disse! Respiro profundo. Me concentro. Falarei de flexibilidade psicológica, ou da falta dela, no nosso contexto pós eleitoral.
Primeiramente, devo ressaltar que estamos diante de um fenômeno complexo, com múltiplas variáveis. E embora eu goste do assunto e acumule algumas leituras sobre o tema, não sou analista política de formação para teorizar sobre o que estamos vivendo, ao menos não por este viés. Vou me ater então ao viés psicológico e relacional. Devo também dizer que não é sobre candidatos, nem partidos, nem quem ganhou, nem quem perdeu, nem sobre a importância de se posicionar ou sobre direito de se abster, nem sobre convencer ninguém a nada. O resultado já está dado.
Aviso: Se você é do time que acredita que houve fraude, talvez este não te seja um texto tão útil. Ou será que sim? Seria a inflexibilidade psicológica a vilã que te faz crer na hipótese de fraude, como se não fosse possível tanta gente assim divergir de você?
Pois bem, vou falar de mim: noto um estranho desconforto instaurado na minha mente no período eleitoral e pós eleitoral. Afinal, descobri que praticamente metade do país pensa diferente de mim e enxerga a realidade de uma forma muito diferente da minha. E você, que talvez tenha votado no candidato antagônico, descobriu exatamente a mesma coisa. Todos “descobrimos” que o lado oposto tem muita gente. Tanto quem ganhou, como quem perdeu. É muita gente! E isso gerou certa perplexidade. Porque será?
Porque tendemos a nos cercar de quem pensa igual e a viver na nossa bolha? Sim. Porque tendemos a ler, a ouvir, a nos abastecer exclusivamente do que se alinha ao que previamente acreditamos? Aham. Porque acreditamos saber e conhecer muito mais do que de fato sabemos sobre temas complexos? Sim também. Pura tendência humana, natural, nada de muito revelador nisso. (OBS.: Tem videos legais sobre esses assuntos aqui: Sobre neurociência e Fake News e Sobre o efeito Dunning-Kruger).
Dentro desse cenário todo, vejo nos feeds xingamentos mil, nas redes sociais posts com frases absolutamente julgadoras e muitas, mas muitaaaas, críticas reducionistas e extremamente rasas. De um lado “como pode alguém votar em chuchu?”, e de outro “como pode alguém votar em abobrinha?”. Veja bem, eu tenho motivos. Você tem motivos. E talvez tenhamos votado em lados opostos.
É difícil compreender os motivos de quem votou em quem considero inaceitável. Mas eles existem, os motivos existem. E eles são baseados em valores de vida, que podem ser completamente diferentes dos meus e ainda assim serem válidos. E em medos que podem ser completamente diferentes dos meus e de algum modo também válidos. Eu repito isso pra mim mesma, de um jeito indigesto, mas muito comprometida em enxergar além do discurso genérico.
Meus amorzinhos, me desculpem, mas não consigo crer que metade do país vota em alguém PORQUE concorda com roubo e só quer comer picanha. Eu não consigo crer que metade do país vota em alguém PORQUE concorda com facismo e nazismo. Existem outras coisas presentes nas escolhas das pessoas, nas escolhas de uma outra metade da população que votou diferente de mim. E as variáveis não são tão simplistas.
Acho que esse texto é sobre exercitar a flexibilidade psicológica.
É sobre assimilar que não existe apenas uma forma de ver o mundo, nem apenas uma forma de pensar soluções para os nossos problemas coletivos e portanto políticos. E quem vota no oposto, vê o mundo com outra ótica. E para esta outra ótica (falo exclusivamente das pessoas do meu entorno e não dos candidatos), escolho intencionalmente assumir o princípio da caridade, que na filosofia significa atribuir às falas de alguém a melhor interpretação possível (dá um Google porque essa estratégia de retórica é massa!)
Eu quero levantar algumas perguntas aqui pra te tirar da vala comum, aquela de acreditar em frase reducionista que explica a complexidade dessas eleições num storie. Pode ser?
Pensa em quem votou na pessoa que você considera a pior opção. Pensou?
Vamos chamar sua pior opção de “Chuchu”.
Respira fundo e te faz essas perguntas com o máximo de honestidade:
– É possivel que essa pessoa tenha, na própria história de vida, na sua criação, na sua visão de mundo, um motivo justo e plausível para votar no Chuchu? Sem julgamentos, abre a caixola, pensa aí… é algo possível? Sim ou não?
– É possível que essa pessoa tenha sido também vítima de informação falsa que a levou a escolher o Chuchu? Isso é algo possível? Sim ou não?
– É possivel que essa pessoa não tenha votado em Chuchu por causa do Chuchu em si, mas talvez por ter medo ou por detestar profundamente a Abobrinha? É algo possível? Que embora a lasanha de abobrinha que você comeu estivesse boa, a lasanha de abobrinha da outra pessoa a fez passar mal? E agora ela prefere creme de chuchu, suco de chuchu, chuchu cru, chuchu frito, assado, mas não abobrinha? Pode? É possível isso aí? Que a experiência da outra pessoa com abobrinha seja oposta a sua?
– É possível que embora você esteja certo de que Abobrinha faz bem para o SEU intestino, o Chuchu possa fazer bem para o intestino alheio? E que não, apesar de toda a sua sabedoria, você não necessariamente sabe totalmente, plenamente, completamente o que é melhor para a digestão de TODOS os outros intestinos do país inteiro? É algo possível?
– É possível ainda que para algumas pessoas Abobrinha e Chuchu sejam igualmente indigestos e a pessoa escolha não ingerir nenhum dos dois? Pra mim abobrinha e chuchu não são iguais, mas eu posso reconhecer que para outro intestino sejam percebidas como muito semelhantes? Tipo, como sendo legumes do mesmo saco? É algo possível?
Talvez você me responda algo como “mas Sara, a escolha não era chuchu ou abobrinha, era abobrinha ou cocô!”. Te respondo pensando no princípio de caridade, fazendo a melhor interpretação possível. E te pergunto: o que pode ter acontecido para que alguém supostamente prefira cocô? E se eu fosse levada a crer que cocô seco é um tratamento capaz de me salvar de uma doença (tem quem acredite que beber xixi faz bem! 👀). E se eu fosse levada a crer que abobrinha é venenosa e poderá me matar em quatro anos se eu a ingerir?
Tá pegando o raciocínio? Você consegue exercitar sua compreensão humana para além dos julgamentos rasos e das frases de efeito nas redes? Por aqui (e talvez pelo exercício da minha profissão, que me obriga a fazer isto diariariamente) tenho tentado. Uma das formas possíveis de exercitar uma mente flexível é observando um fenômeno por diferentes perspectivas. Procuro entender motivos, contextos, valores de vida, aprendizagens, medos e lugares sociais. Tento olhar de outros ângulos. Isso me ajuda a julgar menos. Eu sigo discordando, mas eu julgo menos e até consigo conversar, sacam?
Te convido a exercitar a flexibilidade psicológica, ampliar a tomada de perspectivas, para lidar com nosso contexto político, que desperta tantas emoções aversivas e desagradáveis. Principalmente no que diz respeito as suas relações de afeto. Lembre: esta pessoa é mais do que o voto no chuchu ou na abobrinha. Ela é mais complexa e é fruto de um contexto. Não ignore isto. E não condene ou menospreze alguém exclusivamente por isto. Lembre que seu voto na abobrinha também é fruto de um contexto, de uma história, de um lugar social e do seu acesso maior ou menor a informações confiáveis e de qualidade… ou você acha que não recebeu influência nenhuma de nada alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado? Hahaha….
Você pode respeitosamente se manter leal ao que acredita. Ok. Pode reduzir um pouco a convivência com pessoas que lhe geram muitooo desconforto por posições politicas divergentes da sua no momento. Ok. Mas o que não pode é pressupor que todos deveriam votar na abobrinha como você. Também não pode ofender o pessoal que tem seus motivos (que podem ser válidos nos seus contextos) para votar no Chuchu.
Então tá, seja com chuchu ou com abobrinha, há de se ingerir um prato de flexibilidade psicológica no almoço e outro na janta pra conseguir conviver civilizadamente com as nossas enormes divergências. Confesso que estou me esforçando. É o que tem pra hoje! Seguimos!
#PensoLogoEscrevo #VidaDeTerapeuta #Eleições #FlexibilidadePsicologica #SintoLogoExisto