Oito de Março. Um dia que me gera uma porção de sensações, tantas que acho até difícil de organizar em palavras. Nenhuma delas me é uma sensação desconhecida, volta e meia, quando me deparo com fatos de um passado não tão distante, sinto isso também. Vou e volto na linha imaginária do tempo-história.
É uma gratidão que explode, também é um lamento que aperta. Um desejo profundo de romper a barreira do tempo e olhar nos olhos de mulheres específicas que vieram antes de mim. Queria olhar, com segundos de silêncio, daquele jeito que vê até a alma e então dizer que elas conseguiram.
Eu diria coisas como:
“Eu voto! Sou uma mulher que já nasceu com essa possibilidade de escolher seus representantes, você lutou por mim.”
“Eu sou alfabetizada, eu posso estudar! Tenho nível superior! Sou uma mulher que nasceu com essa possibilidade por sua causa!”
“Eu posso trabalhar! Posso abrir uma conta no banco e colocar lá o que ganho do meu próprio trabalho, acredita?! E nem preciso ter marido, ou seja, depender de ter um marido pra autorizar formalmente a abertura de uma conta como foi até 1962 (a minha mãe é de 1961, e ela ainda nasceu num mundo onde não poderia abrir uma conta sem autorização escrita do marido). Mas veja bem, eu já nasci num tempo em que tá tudo bem eu fazer essas coisas, é uma coisa normal aqui, e sei que antes de você eu não poderia.”
“Se eu te contar de uma viagem que fiz entre amigas, tu acredita? Eu sei que era proibido mulher viajar sem pai ou marido presente, salvo com autorização por escrito ao embarcar. Mas se eu te disser que hoje eu entro em barco, ônibus, avião, desacompanhada e ninguém impede minha entrada, tu acredita? Pois é, eu vivo uma vida onde entrar no trem é simples assim! Obrigada!”
Haveria uma lista gigante de coisas a citar… Mil razões para agradecer à mulheres corajosas, que gastaram suas vidas lutando por justiça e equidade. Elas possibilitaram o meu modo de existir hoje. Às vezes olho para a vida que tenho e custo a acreditar que boa parte das coisas que eu amo na minha vida, como a minha profissão por exemplo, eu simplesmente não teria direito a ter, escolher ou usufruir por ser mulher. E quando olho para isso, vem essa gratidão difusa, que mistura o alívio (pelo que já vivo) com a angústia (de tudo que ainda falta), e faz apertar o peito, sabe?
Gostaria que aquelas mulheres soubessem que nas escolhas LIVRES que já posso fazer, eu me lembro delas. É eu me lembro delas. Uma memória que não tem um rosto, mas tem afeto.
Há uma particularidade sobre mim que mora no mesmo quarto que essas sensações: a minha resistência colossal a crer que “não vale a pena”. Explico. Quando presencio uma situação, ouço um comentário, percebo uma dinâmica machista, eu me posiciono. Sou daquelas que ousa levantar a pergunta, o questionamento, o debate, e que não recua ao gerar desconforto. E já ouvi diversas vezes que “não vale a pena” me estressar. Eu entendo, racionalmente, que pode existir boa intenção em quem me aconselha a escolher calar para me preservar do incômodo social de confrontar. Mas entendam… [suspiro] que nesse quarto cheio de sensações habita uma profunda gratidão. Um sentimento de reconhecimento, entranhado em mim, como se houvesse uma dívida de afeto com todas aquelas que vieram antes de mim e que não se calaram para que hoje eu tenha alguma voz. Se elas cressem que não valeria a pena, que nada mudaria, a minha vida não seria o que é. E quando olho para isso, tão sólido e concreto, sinto gentilmente acomodada em meus ombros uma responsabilidade para com todas as que virão depois. Não é sobre mim, é sobre todas nós, através do tempo. E, para mim, isso sempre vai “valer a pena”.
Eu espero que um dia outras mulheres se lembrem de mim e das minhas contemporâneas (ainda que sem rosto também) quando desfrutarem das vitórias pelas quais ainda lutamos hoje. Sim, a luta está longe do fim! Mas um dia uma mulher vai sair de um tribunal de alma lavada, com o seu agressor preso e não com as suas fotos de redes sociais sendo usadas como justificativa para o abuso sexual sofrido. E ela sair de lá tendo justiça vai ser o óbvio, o mínimo, o normal de acontecer numa situação daquela.
Transporto-me ao futuro e idealizo uma mulher cheia de gratidão por nós, mulheres atuais, constatando de um jeito irrefutável que nós também conseguimos mudar o que nos coube, no nosso tempo-história. É uma esperança que soa dolorosa (pelo longo caminho a frente) e doce ao mesmo tempo. E é uma esperança real, porque desde que este movimento por equidade de gênero começou, minhas caras, não parou. Não parou. Vocês entendem a força disto?
E num instante, enquanto escrevo e penso nessa nossa força coletiva, volto ao passado…
E mais uma vez, com olhos marejados, sinto em mim… eu crio essa cena hipotética… imagino esse encontro com mulheres de outras épocas, imagino esse olho no olho que diz: tua luta valeu a pena, Maria. Obrigada por ter lutado tanto, Ana! Estou viva, Penha! EU ESTOU AQUI, PORQUE VOCÊ CONSEGUIU!
Lutamos! Seguimos!
@saraadais
#8M #DiaInternacionalDaMulher