Julgando a bota alheia

Estava em uma roda de conversa com mais duas pessoas e falávamos sobre a palestra que acabara de acontecer naquela Conferência linda, onde tudo estava muito inspirador.

Nesse momento, a palestrante passou perto de nós, acompanhada de sua equipe, o que naturalmente chamou nossa atenção. Então, uma das pessoas ao meu lado comentou:

– “A palestra foi ótima, mas não precisava daquela bota*.”

(*referência à bota que a palestrante estava usando). Assim que ela terminou a frase, olhou para nós e perguntou: “Vocês não acham?” Como se precisasse reforçar o comentário, embora eu tenha dúvidas se ela percebeu o quão inadequado foi. Confesso que, na hora, não fui tão generosa em minha interpretação. Não achei apenas inadequado, mas associei a uma falta de repertório e a uma necessidade cultural que temos de tecer comentários pejorativos sobre a vestimenta alheia, especialmente em relação a outras mulheres.

Fiquei com muita vontade de discutir o assunto aqui (no meu campinho!). Bora?

Aqui entra a questão do gosto pessoal. Todos nós temos nossas preferências, construídas ao longo da vida através de experiências e repertório acumulado. E todo mundo faz julgamentos de forma intuitiva (alô, sistema límbico!), isso é natural. No entanto, a pessoa que fez o comentário não era “todo mundo” — muito pelo contrário. Ela mesma subiu ao palco em outro momento para falar sobre imagem com profundidade. 

Acho importante refletir: por quê eu preciso fazer um julgamento negativo sobre a escolha de uma bota? Qual é a relevância de um comentário pejorativo sobre o visual de alguém?
À procura de uma foto com bota, kkkk

No livro E Se Fosse Diferente? Caminhos Alternativos para Despertar Sua Criatividade, de Gabriel Gomes e Luciano Braga, um dos capítulos que mais me conectei foi sobre o “jeito certo” de fazer as coisas. Os autores afirmam que o “jeito certo” é uma construção social repassada sem muita reflexão, o que não o inviabiliza, porém, não significa que seja o único jeito, muito menos “o certo”. Quando nos perguntamos “e se fosse diferente?”, começamos a questionar padrões e explorar novas possibilidades, o que nos torna mais empáticos e abertos ao diferente. É uma atitude treinável, ainda bem!

Como profissionais da indústria criativa e da moda, buscamos justamente entender a essência das pessoas e traduzir isso em roupas, cortes de cabelo, estilos… enfim, em uma identidade visual. Isso exige criatividade, repertório e a capacidade de associar elementos. De novo, não se trata de não julgar ou de não ter um gosto pessoal — isso é impossível. 

Mas, quanto mais a gente se aprofunda, menos rígidos nossos julgamentos se tornam, porque começamos a considerar o todo.

Gostaria de provocar essa reflexão: da próxima vez que sentir a necessidade de fazer um comentário pejorativo sobre a vestimenta de alguém, pense um pouco mais. Talvez esteja faltando a você repertório para entender o que está vendo ou empatia para tentar compreender o que a pessoa deseja expressar. Ou ainda, pode ser apenas uma necessidade de afirmar superioridade através do julgamento, como se você estivesse no “Olimpo da moda” (eca!).

Esse tipo de atitude só contribui para a visão equivocada que muitos têm sobre moda e consultoria de imagem, enxergando como algo fútil, superficial e elitista. Na realidade, cada um faz com a moda o que quer e o que pode, de acordo com as informações e ferramentas que possui. E nós, consultoras/es de imagem e estilo, estamos aqui para apresentar novas ideias, materiais, cores e universos, sempre em sintonia com a pessoa que nos confiou essa tarefa.

Só para constar: a bota da palestrante estava completamente contextualizada e harmônica com o restante do look. Além disso, ela havia comentado sobre a importância de apoiar marcas nacionais, o que trouxe ainda mais significado à escolha. <3

Por fim, teço eu julgamento: quando a pessoa que fez o comentário subiu ao palco, ela falou muito bem sobre seu tema. Mas, visualmente, não me recordo de como ela estava vestida, provavelmente porque estava absolutamente dentro do “jeito certo”, sem nada fora do comum que chamasse atenção. E tudo bem! Zero problema nisso. Só não dá pra tentar enquadrar outra pessoa dentro do seu limitado conceito de “jeito certo”.  Apenas, pare.

Picture of Dallen Fragoso

Dallen Fragoso

Um dia eu tive uma "pequena epifania" que tem muito a ver com o assunto desse texto. Deixei o link clicável aqui no meu nome, caso bata a curiosidade...

Respostas de 2

  1. Texto maravilhoso e necessário!
    Direto ao ponto: um dos tantos sobre os quais nós, mulheres, precisamos nos atentar, reflexionar e promover mudança, para que o mundo nos considere e nos trate melhor – começando por nós mesmas, umas com as outras!

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